“O transexual Thomas Beatie, que ficou conhecido como o “homem grávido”, está esperando um segundo filho com sua esposa Nancy. O casal falou sobre o assunto em uma entrevista à apresentadora Barbara Walters. Essa foi a primeira vez que eles falaram desde o nascimento da filha Susan. Beatie confirmou no programa a segunda gravidez e falou de sua vida.” [1]

Esta notícia foi amplamente e divulgada na mídia e longe de ser apenas “sensacionalismo”, por parte dos meios de comunicação, é uma realidade com a qual convivemos hoje. Beatie, de nacionalidade norte-americana, se converteu legalmente para o gênero masculino [2], portanto, nasceu mulher. Hoje é casado com outra mulher como a notícia acima refere, que tem a aparência de uma mulher normal, fato que pode ser verificado facilmente nas fotos que acompanham a notícia. Ele toma hormônios masculinos (testosterona), portanto tem a aparência de um homem e está em sua segunda gestação, o que somente é possível com a suspensão da dosagem de hormônios que toma, para que seu corpo volte a se tornar apto para gestar. E neste caso é o integrante do casal com a aparência masculina que gesta, pois sua esposa Nancy (casada legalmente com Beatie e que já possui duas filhas) tem hoje uma impossibilidade biológica em engravidar [3], segundo informa o casal, que optou pela inseminação artificial.

O caso aqui apresentado, mesmo que atípico pode ser um bom exemplo do tipo de questão que enfrentamos hoje. Beatie é geneticamente mulher, mas se apresenta como homem na aparência, ou seja, constrói sua identidade social desta forma. Já está em sua segunda experiência como mãe, que ainda é uma experiência exclusivamente feminina, ou para algumas mulheres, talvez o auge de sua feminilidade, mesmo assim declara que:

“Apesar de minha barriga estar crescendo com uma nova vida dentro de mim, estou estável e confiante sendo o homem que sou. De forma técnica, me vejo como minha própria ‘mãe de aluguel’, apesar de que minha identidade como homem é constante. Para Nancy, sou o marido dela carregando nosso filho.” [4]

Hoje o profissional Psicólogo, se depara com desafios consideráveis, quando tem em sua prática, que lidar com as questões relacionadas à formação de identidade e às questões de gênero e constituição familiar, como no exemplo acima. Podemos perceber dentro de uma perspectiva sociológica, que vivemos em tempos de plena transformação das estruturas sociais, de caos, perda de perspectivas e confusão em relação aos valores humanos. Mas como o exemplo do artigo demonstra, pertencer a um núcleo familiar é uma forma de existir presente em nossa sociedade, como constituinte básica e estruturante do sujeito humano e isso independe da orientação sexual de seus integrantes e das questões implicadas e provenientes desta forma de existir. “Querer ter um filho biológico não é um desejo feminino ou masculino, é um desejo humano”, disse Beatie em uma entrevista.[5] Portanto cada vez mais devemos buscar não apenas um entendimento teórico e restrito da questão, mas sim abrangente e humano, onde haja uma compreensão das novas constituições identitárias e familiares e suas implicações, que abarque as várias formas de existir do sujeito humano, tanto em sociedade, como em sua historicidade, singularidade e complexidade.

Neste sentido, percorrendo um contexto histórico, baseando-se principalmente em reflexões do posicionamento de teóricos do movimento psicanalítico e psiquiátrico em relação às questões da opção homossexual, ou seja, das “relações de amor carnal entre pessoas do mesmo sexo” e suas possibilidades frente à perspectiva de terem filhos, Roudinesco (2003) contribui na reflexão crítica sobre os possíveis julgamentos de valor, presentes socialmente e provenientes das teorias destes diversos posicionamentos. Ela constata que o tema da homossexualidade sempre foi e ainda é alvo de muita controvérsia, pois desde a antiguidade, diversos posicionamentos foram sendo adotados, frente às relações entre indivíduos do mesmo gênero. Alguns estudiosos defendem que as sociedades remotas da antiguidade, possibilitavam o casamento entre pessoas do mesmo gênero. Mas no mundo moderno, a instituição familiar baseia-se no “princípio fundador” (Roudinesco, 2003, p.183), que é o “acasalamento carnal entre um homem e uma mulher” (Roudinesco, 2003, p.182), ou seja, em uma base quase que exclusivamente biológica. Tendo isso em vista, o que ocorreu em relação à homossexualidade e ao desejo de constituição de uma família com filhos destes indivíduos é a evidenciação da dissociação possível, entre a prática sexual e a procriação, que leva consequentemente a um questionamento das bases familiares, propostas por dois mil anos, ainda segundo Roudinesco (ibdem) e, portanto, da própria sociedade em si. E claro, impossível que algo que toque de forma tão aguda e severa as bases de algo tão antigo e “imutável”, não seja visto como profundamente ameaçador e, portanto, passível de ser questionado até o ponto, se possível, de aniquilação. Desta forma, muitas teorias, teóricos e instituições ligadas à psicanálise se posicionaram historicamente, de forma a “combater” a homossexualidade. Mas frente a fatos, como a notícia citada acima:

“Como não ver essa fúria psicanalítica do fim do segundo milênio, quando não o anúncio de sua agonia conceitual, pelo menos o sinal da incapacidade de seus representantes em pensar o movimento da história?” (Roudinesco, 2003, p.195).

Tendo por base os estudos sobre o gênero, podemos obter uma definição de que estes tratam das:

(…) relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos (Scott, 1995). Essa percepção, por sua vez, está fundada em esquemas classificatórios que opõem masculino/feminino, sendo esta oposição homóloga e relacionada a outras: forte/fraco; grande/pequeno; acima/abaixo; dominante/dominado (Bourdieu, 1999). Essas oposições são hierarquizadas, cabendo ao polo masculino e seus homólogos a primazia do que é valorizado como positivo, superior. Essas oposições/hierarquizações são arbitrárias e historicamente construídas. (Anjos, 2000)

Na definição acima apresentada, temos o cerne de uma questão fundamental, se levarmos em conta as questões do estabelecimento de identidade, relacionada ao gênero. Pois ao aprofundarmos o entendimento da citação, podemos entender que neste enfoque, as diferenças de identidade e conduta, enquanto seres sociais relacionam-se basicamente ao sexo biológico com o qual se nasce. E ainda, segundo a mesma definição, as oposições geradas por este posicionamento, são totalmente arbitrárias e sendo estabelecidas durante o percurso humano de construção social. Um primeiro problema aqui é a não distinção entre sexo e gênero e hoje há muitos “trabalhos que tentam refletir sobre uma nova divisão entre o gênero como identidade moral, política e cultural, e o sexo, como especificidade anatômica.” (Roudinesco, 1998, p.156) Esta diferenciação é facilmente constatável, dentro das perspectivas biológicas e com as possibilidades científicas atuais, pois a partir do século XX, foram demonstradas as diferenças entre a carga genética e a aparência genital. Onde um indivíduo de aparência genital masculina, pode ter uma predominância de cromossomos XX, ou seja, que determinariam alguém com genitália de aparência feminina, os chamados casos de intersexo. E frente a esta perspectiva, muitos questionamentos podem ser feitos, pois com isso, gênero masculino e feminino e sexo referente à determinante da constituição genital, se distinguem. Há ainda os casos de mudança da genitália através de uma intervenção cirúrgica, para tornar esta, compatível com a escolha de orientação sexual. E escolha aqui é uma palavra-chave, pois pode abrir uma perspectiva onde indivíduos, como Beatie aqui citada, podem escolher a identidade que querem adotar em suas vidas sociais e privadas.

A Psicanálise muito tem teorizado sobre as questões de gênero, onde nesta concepção, por exemplo:

“(…) a existência de uma diferença anatômica leva cada representante de ambos os sexos a uma organização psíquica diferente, através do complexo de Édipo e da castração. Mas, se essa diferença existe, ela é pensada por Freud no quadro unificador de um monismo sexual: uma única libido, de essência masculina, define a sexualidade em geral (masculina e feminina). (Roudinesco, 1998, p.154)

E neste ponto, a teoria de Freud sempre gerou muitas controvérsias, em vários setores da sociedade e mesmo no meio psicanalítico, pois tende de certa forma, à primazia masculina, como determinante da formação da identidade de gênero. Mas, quando aprofundamos seu pensamento, entendemos que ele trabalhou com a ideia de bissexualidade da estrutura psíquica, que seria universal e diferiria dos atos sexuais perversos, sendo este, o enquadre dado por este teórico à homossexualidade (Roudinesco, 2003). Sendo assim, nesta perspectiva, os indivíduos possuiriam a opção da escolha, quanto a sua orientação sexual. Mas Freud, sendo o primeiro, mas não o único representante da psicanálise, teve embates sobre o tema, com seus discípulos e herdeiros, que adotaram por vezes, uma atitude de intolerância extrema para com a homossexualidade. E foi com Lacan que houve uma ampliação no entendimento desta perspectiva, pois ele:

“(…) fez do falo (grafado como Falo) o objeto central da economia libidinal, porém um falo desligado de suas conivências com o órgão peniano. Dentro dessa ótica, o falo é assimilado a um significante puro de potência vital, dividindo igualmente os dois sexos e exercendo, portanto, uma função simbólica. Se o falo não é um órgão de ninguém, nenhuma libido masculina, domina a condição feminina. O poder fálico não é mais articulado com a anatomia, e sim com o desejo que estrutura a identidade sexual, sem privilegiar um gênero em detrimento do outro.” (Roudinesco, 1998, p.155).

Nesta perspectiva, podemos refletir sobre a concepção que citamos, onde o sentido de identidade de gênero relaciona-se exclusivamente ao órgão genital propriamente dito e especialmente ao masculino, com significados de mais, de dominação, de poder. E aqui, com a formulação de Lacan, ele se torna um objeto simbólico, que significa tanto o masculino, com o feminino em sua estruturação de identidade de gênero, sendo determinado cultural e historicamente, portanto transcendendo em algum grau, as questões apenas biológicas, para se inscrever na origem da identidade sexual, ou seja, no desejo. E aqui é imperioso citar que o desejo se relaciona ao inconsciente para Freud e que estrutura o sujeito do inconsciente para Lacan. Portanto com este entendimento da psicanálise, podemos iniciar a distinção entre sexo biológico, de identidade de gênero.

Hoje um Psicólogo, para lidar com todos os desafios decorrentes de sua prática, em um mundo em constante mutação, onde as questões de identidade são fundamentais, deve estar preparado em sua base teórica, com concepções que permitam uma flexibilização frente à ainda presente rigidez de pensamento. Onde as concepções de gênero essencialistas, que relacionam a identidade do sujeito somente ao referencial biológico, devem dar lugar a um entendimento de que a identidade é construída numa amalgama de fatores históricos, sociais, culturais e familiares e segundo a psicanálise, muitas vezes inconscientes e que levam a uma possível escolha quanto à adoção e identificação com uma determinada identidade de gênero.

A diversidade cultural que o mundo apresenta hoje, as múltiplas e flutuantes identidades em processo contínuo de construção, a defesa do fragmentário, das parcialidades e das diferenças, trouxeram, como corolário, uma volatilidade das identidades que se inscrevem em uma outra lógica: da lógica da identidade para a lógica da identificação. Da estabilidade e segurança garantidas pelas identidades rígidas, à impermanência, mutabilidade e fluidez da identificação. (Oliveira, 2006) [6]

Assim sendo, este é um assunto muito mais complexo e profundo do que a simples taxação, que relaciona sexo biológico e identidade. Beatie ainda conta em sua entrevista que “Médicos nos discriminaram, nos mandando embora por causa de crenças religiosas. Profissionais de saúde se recusaram a me chamar por um pronome masculino ou reconhecer Nancy como minha esposa. Recepcionistas riram da gente” [7] E neste ponto, o Psicólogo é o profissional da saúde que deve estar habilitado técnica e teoricamente para lidar com este tipo de questão, inclusive em sua adequada discriminação e elucidação dentro dos vários nichos
sociais.

“O que se impõe hoje, a partir da noção contingente, contextualizada e relacional da identidade, é garantir que a multiplicidade e a diversidade sejam preservadas, que a cultura, como uma longa conversa entre partes distintas, permita que convivam sujeitos dos mais diferentes matizes.” (Oliveira, 2006) [8] 

Referências Bibliográficas:

ANJOS, Gabriele dos. Identidade sexual e identidade de gênero: subversões e permanências. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 2, nº 4, Jul/dez 2000, p.274-305. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/soc/n4/socn4a11.pdf> Acesso em: 10/06/2009

ROUDINESCO, E. e PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998.

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003.

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